11 de maio de 2021
NOTA DE REPÚDIO AO PROJETO DE LEI N4909/2020 QUE NAÕ ATENDE À EDUCAÇÃO INCLUSIVA DE PESSOAS SURDAS E SURDOCEGAS
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID repudia o Projeto de Lei n° 4909/2020, do Senador Flávio Arns (PODEMOS/PR), de alteração da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação, para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos e apoios técnicos e financeiros.
A proposta confronta-se com a Constituição da República, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 13.146/2015 que impõem à sociedade brasileira o direito humano à Educação Inclusiva.
A Constituição da República, no artigo 208 inciso III, prevê a garantia do atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino, como uma ferramenta de equiparação de oportunidades e de acessibilidade e não como a essência de sua educação.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estatuiu que os “Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei” (artigo 5, item 1), que os “Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação” (artigo 24, item 1), e que para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os “Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida” (artigo 24, item 1).
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estabeleceu que Estados Partes, para garantirem o direito à educação das pessoas com deficiência, assegurarão que: a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência; b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem; c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas; d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação; e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena (artigo 24, item 2).
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em seu artigo 04 – Obrigações gerais – determina aos Estados Parte a “Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção” (Artigo 4, item 1, a).
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estabelece que os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo (artigo 5, item 2), conceituando a referida discriminação como “qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada na deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro” (Artigo 2 – Definições).
A Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), elenca, em seu artigo 27, que “A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem, complementando, em seu parágrafo único, que É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação”.
Ao propor acrescentar ao artigo 60 da lei diretrizes e bases da educação nacional (LDB) um conceito para a educação bilingue e introduzir apoios técnicos e financeiros “aos sistemas de ensino de educação bilíngue”, incluídas as entidades representativas das pessoas surdas, o Projeto de Lei n° 4909/2020 dá uma sutil roupagem aos artigos 59, 60, 78 e 79 da Lei nº 9.394/1996 que acaba por manter a educação bilíngue de pessoas surdas em patamar não inclusivo:
Art. 2º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida do seguinte Capítulo V-A: “CAPÍTULO V-A DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE DE SURDOS
Art. 60-A. Entende-se por educação bilíngue de surdos, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida em Libras, como primeira língua, e em português escrito, como segunda língua, em escolas bilíngues de surdos, classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos, para educandos surdos, surdocegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com deficiências associadas.
- 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio educacional especializado, como o atendimento educacional especializado bilíngue, para atender às especificidades linguísticas dos estudantes surdos.
- 2º A oferta de educação bilíngue de surdos terá início ao zero ano, na educação infantil, e se estenderá ao longo da vida.
Art. 60-B. Além do disposto no art. 59, os sistemas de ensino assegurarão aos educandos surdos, surdocegos, com deficiência auditiva sinalizantes, com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas materiais didáticos e professores bilíngues com formação e especialização adequadas, em nível superior.
Parágrafo único. Nos processos de contratação e de avaliação periódica dos professores a que se refere o caput serão ouvidas as entidades representativas das pessoas surdas.
Art. 3ºA Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 78-A e 79-C:
Art. 78-A. Os sistemas de ensino, em regime de colaboração, desenvolverão programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos estudantes surdos, surdocegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com deficiências associadas, com os seguintes objetivos:
I -proporcionar aos surdos brasileiros a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades e especificidades e a valorização de sua língua e cultura;
II – garantir aos surdos o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades surdas e não surdas.
Art. 79-C. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação bilíngue e intercultural às comunidades surdas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
- 1º Os programas serão planejados com participação das comunidades surdas, de instituições de ensino superior e de entidades representativas das pessoas surdas.
- 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos no Plano Nacional de Educação, terão os seguintes objetivos:
I -fortalecer as práticas socioculturais e a língua de sinais dos surdos brasileiros;
II -manter programas de formação de pessoal especializado, destinados à educação bilíngue escolar dos surdos, surdocegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com deficiências associadas;
III -desenvolver currículos, métodos, formação e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes aos surdos brasileiros;
IV -elaborar e publicar sistematicamente material didático bilíngue, específico e diferenciado.
- 3º Na educação superior, sem prejuízo de outras ações, o atendimento aos estudantes surdos, surdocegos, com deficiência auditiva sinalizantes, com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas efetivar-se-á mediante a oferta de ensino bilíngue e de assistência estudantil, assim como de estímulo à pesquisa e desenvolvimento de programas especiais.
Ora, a educação bilíngue de pessoas surdas como modalidade de educação escolar oferecida em Libras deve ocorrer em todas as escolas e classes inclusivas – não é necessário que a pessoa surda esteja em uma escola ou classe só para pessoas surdas, de forma nitidamente segregada -.
É necessário que o nosso país passe a ensinar a Libras também para alunos(as) ouvintes. O ensino da Libras é ferramenta indispensável para o aprendizado do(a) aluno(a) surdo(a) e ferramenta própria para alunos(as) sem deficiência promoverem a acessibilidade com a quebra de barreira atitudinal e linguística em relação a colegas surdos.
O projeto de lei afasta-se dos princípios e comandos da Constituição da República e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) que impõe a obrigatoriedade do ensino da Libras para todos(as) os(as) alunos(as), desde o ensino infantil, independentemente serem surdos(as) ou não, devendo constar sim na base nacional comum curricular, previsto na Lei nº 9.394/1996 que se quer alterar, porém, de modo sutil, mantendo escolas bilingues apartadas do sistema regular de ensino, o que não se pode admitir.
Se optarmos pela obrigatoriedade do ensino da Libras, com o passar dos anos estará rompida a barreira de comunicação entre a pessoa surda, que se comunica por meio da Libras ou a pessoa surdocega que se comunica por sistema tátil de sinais, e a pessoa sem deficiência que também aprendeu Libras ou outro sistema de sinais ao longo da sua educação. Essa boa prática, somada às demais adequações e ferramentas pedagógicas disponibilizadas à aluno(a) surdo(a) ou surdocego(a), nas escolas comuns inclusivas, permitirá que todas as pessoas com ou sem deficiência saibam se comunicar, o que resulta em uma sociedade inclusiva, acessível, sem barreiras de comunicação em ambientes sociais e de trabalho.
Enfatize-se que o bilinguismo deve ser garantido no sistema inclusivo de ensino, a ser implementado de acordo com os ditames constitucionais e legais, como uma ferramenta de equiparação de oportunidade ao aprendizado e de acessibilidade, como já mencionado.
Diversa é a proposta de educação bilíngue para pessoas surdas e surdocegas, em escolas e classes especiais, como uma modalidade de educação, conforme a previsão do novo artigo 60-A da Lei nº 9.394/1996.
Ressalte-se que a educação escolar tem diferentes níveis: a) básica – infantil com as fases: creche e pré-escola), b) fundamental e médio; c) superior (graduação, pós-graduação e extensão) – e o que se deve garantir aos alunos(as) com deficiência sensorial é a convivência com alunos(as) sem deficiência, em todos os níveis de ensino e pelo tempo que perdurar, com as devidas ferramentas de acessibilidade.
A AMPID manifesta-se contra o Projeto de Lei n° 4909/2020 porque ofende a Constituição da República, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Brasília, 11 de maio de 2021.
MARIA APARECIDA GUGEL – Presidenta
GABRIELE GADELHA BARBOZA DE ALMEIDA, Vice-Presidenta AMPID
REBECCA MONTE NUNES BEZERRA – CONSELHO TÉCNICO CIENTÍFICO
Anea – Associação Nacional de Emprego Apoiado
Amankay Instituto de estudos e Pesquisas
Escola de Gente
FBASD – Federação das Associações Síndrome de Down
Instituto JNG Projetos de Inclusão Social
Instituto MetaSocial
IPPBrasil – Instituto de Promoção do Paradesporto
IRM – Instituto Rodrigo Mendes
Mais Diferenças
Rede MVI-Brasil
Unilehu – Universidade Livre para Eficiência Humana
VCB – Visibilidade Cegos do Brasil