PRIMEIRAS LINHAS SOBRE O DECRETO 10.502, DE 30.10.2020, QUE Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida
Por Fernando Gaburri: Promotor de Justiça do MPBA. Especialista pela UERN, mestre pela PUCSP e doutor pela USP. Membro associado da AMPID, do IBDFAM e do IBAP. Ex-Procurador do Município de Natal.
Em 30.09.2020 foi promulgado o Decreto 10.502, publicado em 01.10.2020 que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, que prevê inaceitável retorno às escolas especializadas como alternativa às escolas regulares inclusivas (art. 2º, VI).
Como princípio, o Decreto 10.502 prevê a participação de equipe multidisciplinar no processo de decisão da família ou do educando quanto à alternativa educacional mais adequada, se em escolas regulares ou especializadas (art. 3º, VI).
O propósito de alternatividade fica evidente ao se analisar a norma do art. 6º, I:
“Art. 6º São diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida:
I – oferecer atendimento educacional especializado e de qualidade, em classes e escolas regulares inclusivas, classes e escolas especializadas ou classes e escolas bilíngues de surdos a todos que demandarem esse tipo de serviço, para que lhes seja assegurada a inclusão social, cultural, acadêmica e profissional, de forma equitativa e com a possibilidade de aprendizado ao longo da vida”.
O ato normativo parece acometido de algumas inconstitucionalidades.
O Decreto regulamentar, ato normativo privativo do Chefe do Poder Executivo, com base no art. 84, IV, da Constituição Federal, tem por objeto minudenciar alguma matéria já tratada em lei, não podendo ir contra a lei, tampouco inovar no ordenamento jurídico, sob pena de invalidade. Nos termos do art. 5º, II da Constituição, ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo, senão em virtude de lei.
Em sua epígrafe, o Decreto 10.502 invoca o disposto no art. 8º, § 1º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que pouco ou nada tem a ver com a inovação ora trazida, a saber:
“Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino.
§ 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais.”
Em vez de minudenciar o quanto disposto na LDB e ou na LBI, o Decreto 10.502 nada ou pouco regula, mas “Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. Para tanto, adota princípios opostos aos contemplados na LBI, esta fruto da vontade popular, aprovada após amplo debate nas Casas do Poder Legislativo.
Acaso fosse o propósito do Decreto 10.502 regulamentar a lei, os limites da regulamentação em matéria de educação inclusiva estão postos na meta 4 da Lei 13.005 de 25.06.2014 e no art. 27 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que dispõe:
“Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.”
Nesta lógica, prevê o art. 28, I e II, da LBI incumbir ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar o sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida; e aprimorar os sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena
Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5357, em 09.06.2016, proposta contra o § 1º do art. 28 e o art. 30, ambos da LBI, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da educação inclusiva, destacando que “À luz da Convenção e, por consequência, da própria Constituição da República, o ensino inclusivo em todos os níveis de educação não é realidade estranha ao ordenamento jurídico pátrio, mas sim imperativo que se põe mediante regra explícita”.
Se a tônica da LBI é a educação inclusiva, que consiste na efetiva e plena participação da pessoa com deficiência nas escolas regulares, sem prejuízo do atendimento educacional especializado, não caberia ao decreto regulamentar dispor em sentido oposto, possibilitando a violação ao princípio da vedação de retrocesso, fazendo retornar a uma realidade de segregação, vigente há aproximadamente 200 anos, quando a pessoa com deficiência vivenciava a institucionalização ao frequentar, exclusivamente, escolas para cegos, escolas para surdos, escolas para pessoas com deficiências intelectuais etc.
Demais disso, o art. 208, III, da Constituição proclama ser dever do Estado oferecer ensino especializado aos alunos com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. Avançando na regulamentação do tema, o art. 24, § 1º, da Convenção de Nova Iorque, que tem status de norma constitucional, prevê que os Estados signatários assegurarão “sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida com o objetivo, dentre outros, de promover a participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre.
Seu § 2º prevê que:
“2.Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que:
a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;
b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;
c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas;
d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena.”
Ao ratificar a Convenção de Nova Iorque, a República Federativa do Brasil comprometeu-se, dentre outras providências, a Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção; e abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a presente Convenção e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a presente Convenção (art. 4º, § 1º, “a” e “d”.
O Decreto 10.502 é objeto de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, ajuizada em 05.10.2020, pelo partido político Rede Sustentabilidade, com pedido cautelar para imediata suspensão do Ato, por violar os preceitos fundamentais no tocante ao direito à educação e à não discriminação. A petição inicial da ADPF Destaca que “atualmente as crianças e adolescentes com deficiência estão integradas, porém não incluídas nas escolas, de modo que o cenário ideal é o investimento em escolas regulares para adaptação da infraestrutura, especialização dos profissionais da educação e contratação de demais profissionais qualificados (médicos, fisioterapeutas, psicólogos etc.). Diante disso, o redirecionamento de recursos para o fortalecimento de escolas especiais e classes especializadas, tal como está previsto na PNEE 2020, não apenas segregará os estudantes, impedindo a inclusão daqueles que possuem deficiência, mas também fará com que haja pouco investimento em escolas regulares para o atendimento dos educandos com deficiência”.
Logo, o Decreto, além de desprezar todo um esforço pela inclusão de pessoas com deficiência na educação regular, conquista alcançada ao longo dos últimos anos, apresenta vício de legalidade, por inovar no ordenamento jurídico, além de contrariar o princípio da educação inclusiva trazido pela Convenção da ONU e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre eles a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a redução das desigualdades sociais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.