AMPID emite Nota Pública sobre o Tratado de Marraqueche e Fundamentos para atender a consulta pública da Secretaria Especial de Cultura

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID, em vista da abertura de consulta pública da Secretaria Especial de Cultura (SECULT) (acesse aqui o link para a consulta pública) para a regulamentação do Tratado de Marraqueche, concernente a Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para ter Acesso ao Texto Impresso, celebrado em 28 de junho de 2013 no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e promulgado pelo Brasil pelo Decreto nº 9.522, de 8 outubro de 2018, esclarece que:

 

  1. A proposta de autoria do Brasil, em parceria com o Paraguai e Equador, é um acordo internacional que flexibiliza as normas de direito autoral para a produção de obras em formato acessível para pessoas cegas, com deficiência visual ou que tenham dificuldades para ter acesso ao texto impresso.
  2. O Brasil depositou a carta de ratificação em 11 de dezembro de 2015 após a aprovação do tratado pelas duas casas do Congresso Nacional, seguindo o quórum qualificado do artigo 5º, §3º, da Constituição da República, conforme o Decreto Legislativo nº 261, de 25 de novembro de 2015.
  3. Seguindo a melhor doutrina e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF, Carta Rogatória nº 8.279/Argentina, relator Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 10/08/2000), o Decreto n 9.522, de 8 outubro de 2018 obriga sua aplicação internamente.
  4. Há questões descritas no Tratado de Marraqueche que contradizem as normas existentes, especialmente, quanto ao conceito de pessoa com deficiência estar fora dos parâmetros adotados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD, 2006, Artigo 1) e pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI, 2015, artigo 2º) que adotam o modelo biopsicossocial de deficiência e não o modelo médico do Tratado de Marraqueche, consubstanciado em diagnóstico de anomalias, como o inserido no artigo 3º, letras a, b, c:
  5. a) cega;
  6. b) que tenha deficiência visual ou outra deficiência de percepção ou de leitura que não possa ser corrigida para se obter uma acuidade visual substancialmente equivalente à de uma pessoa que não tenha esse tipo de deficiência ou dificuldade, e para quem é impossível ler material impresso de uma forma substancialmente equivalente à de uma pessoa sem deficiência ou dificuldade; ou
  7. c) que esteja, impossibilitada, de qualquer outra maneira, devido a uma deficiência física, de sustentar ou manipular um livro ou focar ou mover os olhos da forma que normalmente seria apropriado para a leitura;

independentemente de quaisquer outras deficiências.

 

  1. O Tratado de Marraqueche elege entidades autorizadas ou reconhecidas pelo governo para, sem intuito de lucro, prover educação, formação pedagógica, leitura adaptada ou acesso à informação aos beneficiários (Artigo 2º, letra c), relegando i) as pessoas com deficiência visual a uma posição de meras receptoras da vontade das entidades que, quando quiserem, decidam o que adquirir e com isso impedem o direito de a pessoa com deficiência de decidir o que deseja ler e em que momento, ii) e/ou a pessoa com deficiência ser obrigada a se associar a esta ou aquela entidade para poder ter acesso às obras.

 

  1. O Tratado de Marraqueche prevê a possibilidade de o Estado-Parte restringir a política de direitos autorais à obras “que não possam ser obtidas comercialmente sob condições razoáveis para os beneficiários naquele mercado (Artigo 4, §4º), permitindo a interpretação de que nem todas as obras escritas precisam ser acessíveis ao público com deficiência visual[1]” (Pinheiro, Moura, 2019, p.398): poderá restringir as limitações ou exceções nos termos deste Artigo às obras que, no formato acessível em questão, não possam ser obtidas comercialmente sob condições razoáveis para os beneficiários naquele mercado.

 

No entanto, qualquer restrição é vedada nos termos da i) Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que celebra a liberdade de buscar, receber e compartilhar informações e ideias, de opinião e de acesso à informação (Artigo 21), em igualdade de oportunidades com as demais pessoas e por intermédio de todas as formas de comunicação de sua escolha, na forma da definição de comunicação do Artigo 2, e ii) da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, artigo 68, que determina ao poder público adotar mecanismos de incentivo à produção, à edição, à difusão, à distribuição e à comercialização de livros em formatos acessíveis, inclusive em publicações da administração pública ou financiadas com recursos públicos, com vistas a garantir à pessoa com deficiência o direito de acesso à leitura, à informação e à comunicação. Sendo que, nos editais de compras de livros, inclusive para o abastecimento ou a atualização de acervos de bibliotecas em todos os níveis e modalidades de educação e de bibliotecas públicas, o poder público deverá adotar cláusulas de impedimento à participação de editoras que não ofertem sua produção também em formatos acessíveis.

 

 

E mais, o Tratado de Marraqueche ao permitir a reprodução de obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra (Artigo 11), choca-se com a responsabilidade direta das editoras de produzir, distribuir e comercializar obras em formato acessível, em confronto com os Artigos 21 (liberdade de expressão e de opinião e acesso à informação), 30 (participação na vida cultural e em recreação, lazer e esporte) da CDPD e artigo 68 da LBI.

 

  1. Quanto à eventual antinomia entre a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e o Tratado de Marraqueche, prevalecem a CDPD e a LBI. Isso porque, o Artigo 12, item 2 do Tratado de Marraqueche que reconhece a aplicação de normas mais benéficas previstas na legislação nacional do Estado: Este Tratado não prejudica outras limitações e exceções para pessoas com deficiência previstas pela legislação nacional.

 

Portanto,

 

  1. A pessoa com deficiência tem o direito de escolher e de comprar toda e qualquer obra disponível no mercado editorial em formato acessível, segundo a sua vontade, quando quiser e puder, tal qual todas as demais pessoas. Portanto, não é razoável condicionar o direito de adquirir obras em formato acessível à associação da pessoa com deficiência às entidades autorizadas ou reconhecidas pelo governo.

 

  1. Que sejam contempladas no decreto executivo tanto a possibilidade de aquisição de obras em formato acessível por intermédio de associações quanto diretamente pela pessoa com deficiência, mediante o pagamento do valor de mercado editorial da obra.

 

Brasília, 27 de abril de 2020.

 

 

Maria Aparecida Gugel – Presidenta

 

Gabriele Gadelha Barboza de Almeida – Vice-Presidenta

 

Fernando Gaburri, Associado AMPID

 

 

[1] In Diálogos aprofundados sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Gugel. Maria Aparecida, Belo Horizonte: RTM, 2019.

 

 

Para acessar a nota pública em PDF, clique aqui: NotaPublica_TratadoMarraqueche_2020

 

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