Nota Técnica sobre a não taxatividade do rol de cobertura da Agência Nacional de Saúde Suplementar

 

26 abril de 2022

 

NOTA TÉCNICA SOBRE A NÃO TAXATIVIDADE DO ROL DE COBERTURA DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR

 

A Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In), que atua nacionalmente em defesa dos direitos das pessoas com deficiência e congrega 16  organizações da sociedade civil [1] vem manifestar sua preocupação em relação ao julgamento em curso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) [2] sobre a interpretação da taxatividade ou não do Rol de Procedimentos e Eventos de Saúde  da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ou Rol de Cobertura Obrigatória [3] – lista que estabelece itens de cobertura mínima e obrigatória que os planos de saúde devem garantir aos seus usuários.

Segundo a Lei nº 9.961/2000, que criou a ANS, é seu dever atuar na “defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde” (art. 3º), incluindo a regulação das atividades das operadoras de planos privados de assistência à saúde nas relações com consumidores e atualizar o Rol.

A interpretação majoritária do STJ sobre o tema sempre foi no sentido de reconhecer o caráter exemplificativo do Rol da ANS. Isso porque a Lei 9.656/98, que trata dos planos e seguros de saúde privados, prevê que todos os procedimentos diagnósticos e terapêuticos de doenças incluídas na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) são de cobertura obrigatória. Essa é a regra geral definida na lei.

As poucas exceções que permitem restrição de cobertura estão delimitadas no art. 10 da Lei 9.656/98 e incluem tratamentos ou cirurgias experimentais, procedimentos, órteses e próteses para fins estéticos, medicamentos importados não nacionalizados, entre outros.

Eventual mudança de entendimento do STJ para considerar o rol taxativo ou fechado e não exemplificativo, em razão da divergência de posicionamento da 3ª e da 4ª Turma, prejudicará de forma significativa pessoas com deficiência e pessoas com doenças raras, que integram os quase 48 milhões de usuários de planos de saúde em todo o país. Também configurará flagrante violação às garantias fundamentais de quase 1/4 da população brasileira e evidente quebra dos compromissos assumidos pelo Estado Brasileiro, conforme adiante se verá, ao ratificar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) [4] com status de norma constitucional [5].

A Convenção prevê que os Estados Partes devem adotar todas as medidas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo serviços de reabilitação (art. 25, caput). Em especial, dispõe que têm o dever de propiciar gratuitamente ou a custos acessíveis (art. 25, “a”) todos os serviços de saúde de que as pessoas com deficiência necessitam especificamente por causa de sua deficiência, inclusive diagnóstico e intervenção precoces, bem como todos os serviços projetados para reduzir ao máximo e prevenir deficiências adicionais, inclusive entre crianças e idosos (art. 25, “b”).

Os compromissos assumidos pelo Brasil quanto ao direito à saúde das pessoas com deficiência foram ampliados pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI) [6], ao prever que as operadoras de planos e seguros privados de saúde são obrigadas a garantir à pessoa com deficiência, no mínimo, todos os serviços e produtos ofertados aos demais clientes (art. 20). A LBI também expressamente vedou quaisquer formas de discriminação contra a pessoa com deficiência, inclusive por meio de cobrança de valores diferenciados por planos e seguros privados de saúde, em razão de sua condição (art. 23).

Pessoas com deficiência são diversas e cada qual, em razão de sua condição, pode necessitar de procedimentos diagnósticos e terapêuticos diversos a fim de terem assegurado, em igualdade de oportunidades, seu direito de acesso à saúde.

O direito à igualdade e não-discriminação na saúde foi tratado pelo Comitê de Monitoramento da CDPD em seu Comentário Geral n. 6 [7], cabendo a cada um dos Estados-Parte proibir e prevenir a negação de serviços de saúde a pessoas com deficiência e endereçar formas de discriminação que violam o seu direito de acessar cuidados de saúde com base no consentimento livre e informado ou por tornar instalações ou informações inacessíveis.

A fixação de entendimento pela taxatividade do Rol da ANS poderá caracterizar discriminação por motivo de deficiência (CDPD, Artigo 5), uma vez que pessoas com deficiência usuárias de planos de saúde podem ser submetidas à limitação ao acesso a determinados procedimentos diagnósticos e terapêuticos em virtude da deficiência e de suas necessidades especificas. Isso é, perderão a possibilidade de se beneficiar de inúmeros serviços, procedimentos e medicamentos de que necessitam e que hoje não estão expressamente previstos no Rol da ANS. 

O STJ estaria, assim, chancelando a negativa de cobertura por operadoras de saúde a usuários com deficiências e, indiretamente, a eventual cobrança de valores a mais para acesso a procedimentos e tratamentos em razão da deficiência, o que viola a Constituição Federal, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.

Desse modo, ao lado das milhares de pessoas com deficiência e de outros usuários dos planos de saúde privados em território nacional, a Rede-In se manifesta contrariamente à fixação da taxatividade do Rol da ANS.

Por fim, a Rede-In espera que, ao julgar os recursos que deram origem à discussão, o STJ assegure a ampla participação da sociedade civil e firme entendimento quanto ao caráter exemplificativo do Rol de Procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar, impedindo, com isso, que milhões de brasileiros com deficiência fiquem desassistidos e privados de seu direito à saúde em igualdade de condições com as demais pessoas. 

 

REDE BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

 

[1] Compõem a Rede-In: Instituto Jô Clemente, Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD; Instituto Rodrigo Mendes; Associação Nacional de Membros(as) do Ministério Público em Defesa das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID; Escola de Gente – Comunicação em Inclusão; Rede Brasileira do Movimento de Vida Independente – Rede MVI; Associação Brasileira por Ação pelos Direitos das Pessoas com Autismo – ABRAÇA; Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade – APABB; Coletivo Brasileiro de Pesquisadores e Pesquisadoras dos Estudos da Deficiência – MANGATA; Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas; Visibilidade Cegos Brasil; Instituto JNG; Associação Nacional de Emprego Apoiado – ANEA; Coletivo Feminista Helen Keller; Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais – AME-SP; Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas; Vidas Negras com Deficiência Importam – VNDI;  Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e Com Baixa Visão – MBMC  e Izabel Maior. 

[2]  Recursos EREsp nº 1886929/SP e EREsp nº 1889704/SP.

[3] O que é o Rol de Procedimentos e Evento em Saúde. Disponível em: http://www.ans.gov.br/index.php/planos-de-saude-e-operadoras/espaco-do-consumidor/737-rol-de-procedimentos%3E. Último acesso: 20.04.2022.

[4] Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Último acesso: 20.04.2022.

[5] Constituição Federal de 1988. Art. 5º (…) §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.  Último acesso: 20.04.2022.

[6] Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Último acesso: 20.04.2022.

[7] Original em inglês: “(…) 66. Under articles 5 and 25 of the Convention, States parties must prohibit and prevent discriminatory denial of health services to persons with disabilities and to provide gendersensitive health services, including sexual and reproductive health rights. States parties must also address forms of discrimination that violate the right of persons with disabilities, that impede their right to health through violations of the right to receive health care on the basis of free and informed consent, or that make facilities or information inaccessible.” Tradução livre. ONU. CRPD/C/GC/6. Comentário Geral n. 6 (2018) sobre igualdade de não-discriminação, p. 15. Tradução livre. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G18/119/05/PDF/G1811905.pdf?OpenElement. Último acesso: 20.04.2022. 

 

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