14 de julho de 2021
A AMPID adere a nota da Rede-In sobre a Lei nº 14.176/2021 que aponta retrocessos nos critérios de acesso ao BPC e concessão do auxílio inclusão
NOTA SOBRE A LEI Nº 14.176, DE 22 DE JUNHO DE 2021
A Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In), que atua nacionalmente em defesa dos direitos das pessoas com deficiência e congrega 16 organizações da sociedade civil, manifesta-se sobre a Lei nº 14.176/2021, que trata do critério de acesso e da avaliação para o benefício de prestação continuada (BPC), previsto na Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – Loas), e dispõe sobre o auxílio-inclusão, previsto na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência).
A Lei nº 14.176/2021 tem origem na Medida Provisória n° 1.023/2020, que foi aprovada pelo Congresso Nacional na forma do Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 10/2021.
Registramos o nosso posicionamento contrário às alterações trazidas por essa Lei.
- Critérios para admissão da ampliação da renda de acesso ao BPC para ½ salário mínimo
A Lei nº 14.176/2021 dispõe que o regulamento de que trata o § 11 do artigo 20 da Loas poderá ampliar o limite de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º para até ½ (meio) salário-mínimo, desde que observados, na avaliação dos elementos probatórios da condição de miserabilidade e da situação de vulnerabilidade, o grau da deficiência, a dependência de terceiros para o desempenho de atividades básicas da vida diária e o comprometimento do orçamento familiar com gastos médicos e outros itens definidos no artigo 20-B.
Embora a mídia venha noticiando a ampliação da renda de acesso ao BPC para ½ salário mínimo, tal ampliação não está garantida em qualquer contexto, como ocorria na Lei nº 13.981/2020, cuja eficácia foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em face do julgamento da ADPF 662-DF. Os aspectos aptos a autorizarem a ampliação da renda são, a propósito, bem restritivos:
- O referente ao grau de deficiência (art. 20-B, I), tem o objetivo nítido de afastar das pessoas com deficiência leve, que têm renda mensal familiar per capita entre ¼ e ½ salário mínimo, a possibilidade de receber o benefício de prestação continuada. A prática notória do INSS de não conceder o BPC a esse grupo de pessoas é reforçada nesse dispositivo, em afronta ao artigo 203, V, da Constituição Federal, que estabelece o direito ao benefício à pessoa com deficiência, sem qualquer distinção.
- O relacionado ao comprometimento do orçamento familiar impõe uma barreira importante para as pessoas com deficiência e idosas que, na prática, terão enorme dificuldade de provar ao INSS que os itens listados no inciso III do artigo 20-B não são disponibilizados gratuitamente pelo Sus e/ou que o serviço não é prestado pelo Suas. Ademais, a exclusividade prevista nesse dispositivo legal em relação àqueles itens afasta a possibilidade de que a situação de miserabilidade seja demonstrada por meio de outros gastos não estabelecidos expressamente na Lei.
Como o Supremo Tribunal Federal já afirmou a inconstitucionalidade do teto de ¼ do salário mínimo para acesso ao benefício, os Poderes Executivo e Legislativo deveriam ampliar o critério de renda para ½ salário mínimo, independentemente de qualquer requisito, especialmente de difícil comprovação. Sem essa providência estará inviabilizado o recebimento do BPC por pessoas com deficiência de baixíssima renda.
- Auxílio-Inclusão
O artigo 2º da Lei nº 14.176/2021 acrescenta os artigos 26-A a 26-H à Lei nº 8.742/1993, com o intuito de disciplinar a concessão do auxílio-inclusão, previsto no artigo 94 da Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Segundo a LBI, o auxílio é devido a pessoas com deficiência moderada ou grave que recebem o BPC e passam à condição de trabalhador(a) ou que tenham recebido esse benefício nos últimos 5 anos e exerçam atividade remunerada.
Ao estabelecer o limite de 2 (dois) salários mínimos para a remuneração recebida pela pessoa com deficiência, sem qualquer escalonamento, a Lei nº 14.176/2021 concorre para a estagnação da pessoa com deficiência no cargo ou função. A previsão restringe o progresso na atividade laboral e discrimina a pessoa em razão de sua deficiência.
O problema poderia ter sido minimizado com a previsão, por exemplo, de perda gradual do auxílio-inclusão conforme a elevação, também gradual, da remuneração ou, em outras palavras, com a previsão de uma escala de remunerações superiores a 2 salários mínimos equivalentes a percentuais cada vez menores do auxílio. Com isso o(a) trabalhador(a) com deficiência não seria prejudicado(a) com a perda do percentual total da verba indenizatória, na hipótese de aumentos não tão significativos na remuneração, e também teria a oportunidade de ir adquirindo, aos poucos, a autoconfiança necessária para abrir mão do auxílio-inclusão.
A Lei também deveria ter excluído desse teto de 2 salários mínimos as parcelas variáveis da remuneração, como é o caso do pagamento do trabalho extraordinário ou da participação nos lucros, uma vez que tais ganhos não são permanentes.
Além disso, para o recebimento do auxílio-inclusão previsto na Lei 14.176/2021, é considerado o grau de vulnerabilidade social da família, em vez do peso do custo da deficiência na vida de pessoas com deficiência grave e moderada que estão na faixa salarial de até dois salários mínimos. Nesse cenário, a Lei transfere para a família o custo da deficiência e afasta o auxílio do objetivo pretendido pela relatora da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência na Câmara dos Deputados, qual seja, o de “…custear, pelo menos em parte, as despesas adicionais que as pessoas com deficiência possuem para exercer uma atividade profissional que lhes garanta a subsistência em igualdade de condições com os demais trabalhadores” (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0eme6ma9ix668movpdy37foyb3260.node0?codteor=1354871&filename=PL+2130/2015 ).
Ademais, a regra condiciona o recebimento do auxílio-inclusão à persistência das condições de pobreza extrema da família, uma vez que impõe que a pessoa com deficiência atenda ao critério econômico previsto para o acesso ao BPC, estabelecendo uma exigência não mencionada na lei originária, a Lei Brasileira de Inclusão de Pessoas com Deficiência.
Por fim, as regras para o direito ao auxílio-inclusão são cumulativas, o que dificulta muito o preenchimento dos requisitos por parte dos potenciais beneficiários, tornando o direito letra morta para parcela significativa das pessoas com deficiência.
Solicitamos e sugerimos a revisão legislativa do tema, para o aprimoramento imediato, e não no prazo de 10 anos previsto na Lei.
- Possibilidade de descontos no BPC e no auxílio-inclusão recebidos indevidamente
A previsão de tais descontos encontra-se no artigo 40-C da Lei 8.742/1993, incluído pela Lei 14.176/2021 e é manifestamente inconstitucional por esvaziar a garantia, de caráter alimentar, “de um salário mínimo de benefício mensal” à pessoa com deficiência e idosa que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, inscrita no artigo 203, V, da Constituição Federal.
- Avaliação biopsicossocial da deficiência
Relativamente à avaliação da deficiência, “que justifica o acesso, a manutenção e a revisão do benefício de prestação continuada”, preocupa-nos a autorização para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) adotar, ainda que excepcionalmente, até 31 de dezembro de 2021, a realização da avaliação social, de que tratam o § 6º do art. 20 e o art. 40-B da Loas, por meio de videoconferência (art. 3º, I). Isso porque o público alvo do BPC é de baixíssima renda, sendo evidente, assim, a impossibilidade de acesso à internet e às tecnologias, bem como a falta de autonomia nesse campo. Cabe ainda destacar, que muitas pessoas teriam dificuldade, em razão do impedimento e/ou da idade avançada, de se manterem de forma remota em um atendimento relativamente longo para essa população. O Conselho Federal de Serviço Social, a propósito, já se posicionou contrariamente a essa modalidade de atendimento, o que reforça a incoerência da Lei nesse ponto (http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1702 ).
Outro dispositivo preocupante é o inciso II do mesmo artigo 3º da Lei nº 14.176/2021, pois possibilita a aplicação, na concessão ou manutenção do benefício de prestação continuada, de média da avaliação social, o que implica, na prática, o abandono da avaliação da deficiência sob um enfoque biopsicossocial, em que são considerados não apenas os impedimentos, mas também os fatores socioambientais e as barreiras que restringem a participação social. Com isso, restaura-se a centralidade dos atributos corporais na avaliação, restabelecendo o modelo biomédico de deficiência, em flagrante afronta ao artigo 1 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Nesse ponto a Lei retrocede ao modelo médico, sendo imperativo que o Poder Executivo implemente, com a máxima brevidade, o Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M), elaborado com base na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e nos estritos termos do art. 2º, § 2º, da Lei 13.146/2015, norteado pelo modelo social de deficiência, validado cientificamente e chancelado pelo Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência.
- Critério de ¼ de salário mínimo para acesso ao BPC
Em mais de uma oportunidade o Congresso Nacional, legítimo representante do povo, manifestou-se favoravelmente à elevação do critério econômico para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
O Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou ao Ministério da Cidadania que, com apoio do Ministério da Economia e sob a coordenação da Casa Civil da Presidência da República, a partir do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias referente ao exercício de 2022, apresente avaliação financeira e atuarial das despesas com o Benefício de Prestação Continuada.
O STF, corroborando a decisão do TCU, deixou claro na ADPF 662 a necessidade de implementação de todas as condições previstas no art. 195, § 5°, da CF e art. 113 do ADCT, bem como nos arts. 17 e 24 da LRF e 114 da LDO.
Assim, faz-se necessário um estudo aprofundado do impacto financeiro e indicação de receita no orçamento, a fim de que, quando da votação da próxima Lei Orçamentária Anual, seja aumentado o critério econômico de acesso ao BPC para o patamar de ½ salário mínimo, como já ocorre em relação a outros programas de transferência de renda.
O Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 10/2021 – que resultou na Lei nº 14.176/2021 – alterou a Medida Provisória n° 1.023/2020, ampliando o critério nessa previsto, de renda mensal familiar por pessoa inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, para renda igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, como previsto na Lei nº 13.981/2020. Não obstante a Lei nº 14.176/2021 tenha evitado, quanto a esse aspecto, o retrocesso que a MP 1.023 pretendeu impor ao público do BPC, é impositivo avançar no sentido apontado pela Suprema Corte.
REDE BRASILEIRA DE INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA*
* Compõem a Rede-In: Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD; Associação Nacional de Membros(as) do Ministério Público em Defesa das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID; Associação Brasileira por Ação pelos Direitos das Pessoas com Autismo – ABRAÇA; Instituto JNG; Rede Brasileira do Movimento de Vida Independente – Rede MVI; Escola de Gente – Comunicação em Inclusão; Instituto Jô Clemente – IJC; Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade – APABB; Coletivo Brasileiro de Pesquisadores e Pesquisadoras dos Estudos da Deficiência – MANGATA; Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas; Visibilidade Cegos Brasil; Associação Nacional de Emprego Apoiado – ANEA; Coletivo Feminista Helen Keller; Instituto Rodrigo Mendes; Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais – AME-SP; Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas e Izabel Maior.
Para acessar a nota em PDF, clique aqui: NOTA REDE-IN SOBRE A LEI Nº 14.176 – 12-07-2021